sábado, 28 de abril de 2012

A Música Também como Fonte de Conhecimento

É muito atraente percebermos a grande importância das linguagens artísticas no processo de construção de um importante acervo histórico social de uma nação cultural. A literatura, a música, as grandes pinturas academicistas, entre outras linguagens, possuem os fatos sociais expressos no cotidiano como fonte de inspiração para a criação de seus registros artísticos. Por meio desse raciocínio, essa breve pesquisa tem como objetivo lançar uma concisa análise sobre a admirável presença da música (do grego musiké tekhné, “arte das Musas”) como fonte de conhecimento histórico. Essa fonte será duas canções das quais serão possível nutrir a cede de conhecimento sobre a sociedade brasileira vivida na década de 64, era governada pela ditadura militar.
Mas antes, é conveniente perceber que a música oral é uma linguagem que está presente em nossa cultura há muito tempo, essa oralidade musicada possui uma extraordinária importância por conseguir ecoar de gerações a gerações o conhecimento e tradições populares, necessários para a permanência da identidade cultural de um povo, por meio disso, é necessário ter a consciência de que a música oral possui como ferramenta principal a Palavra como código para a transmissão de um conhecimento, a palavra apresenta um poder muito amplo por conseguir atingir a subjetividade do outro sujeito que escuta e entende, por isso que, esse componente da fala às vezes machuca, alivia e até “grita” ao reivindicar por meio de intensas palavras de ordem ditas em tom alto, quando rezamos (subjetivamente ou coletivamente em coral), muitas vezes não nos conscientizamos de que estamos orando por meio de palavras, e são essas que nos ligam com o mundo sagrado, com as nossas divindades, por isso que vale muito à pena termos a consciência sobre a força intensa que uma palavra possui quando dita no cotidiano em qualquer situação.
Francisco Buarque de Holanda, carinhosamente conhecido por Chico Buarque conseguiu expor por meio de diversas canções e palavras a sua experiência histórica, vivido e testemunhado aqui no Brasil, durante o período da ditadura militar, vale muito à pena nos recorrermos às palavras do historiador Eric Hobsbawm[1] citado na introdução do livro A Década de 60. Rebeldia, Contestação e repressão política de Maria Paes para percebermos o valor do sujeito que está imerso existencialmente em uma situação histórica como um agente historiador, sendo acadêmico ou não, por possuir uma memória pessoal;

Ali onde os historiadores tentam se defrontar com um período para o qual existem testemunhas oculares vivas, dois conceitos de história bem diferentes se chocam ou, no melhor dos casos, completam-se mutuamente: a acadêmica e a existencial, o arquivo e a memória pessoal. Pois todo mundo é historiador de sua própria vida passada consciente, na medida em que elabora uma versão pessoal dela: um historiador nada confiável, sob a memória dos pontos de vista, como bem sabem todos os que se aventuram pela “história oral”, mas um historiador cuja contribuição é essencial (Eric Hobsbawm).

Esse trecho extraído na obra A era dos Impérios de Hobsbawn elucida explicitamente o caso de Chico Buarque por ser além de um cantor, compositor, dramaturgo, escritor e ter tido contato com a academia[2], ser um sujeito que esteve imerso em um importante contexto histórico adquirindo um intenso acervo em sua memória para ser compartilhado e também registrado, “sendo historiador de sua própria vida” que está inteiramente ligada à vida dos outros que não só viveram naquela época, mas desses que estão aqui no século XXI e precisam ter acesso a esses fatos ocorridos da década de 64 para possuírem a consciência histórica social, e o mais atraente é que esse acesso também é feito por meio da música de Chico Buarque, que estão compostas por intensas palavras que ecoam e atingem a nossa consciência contemporânea.
Uma das músicas escolhidas para análise desse trabalho foi à composição Cálice. Essa música possui como título a palavra Cálice, que lança um intenso sentimento religioso por estar presente em cultos católicos. O ponto atraente da música é a presença de mensagens subliminares, uma dessas mensagens é expressa através da palavra Cálice por ser considerada pela gramática portuguesa um homônimo[3] que ganha o sentido de cale-se ao sair da voz do cantor, claro que o objetivo é despistar a censura da ditadura militar e levar essa mensagem para aqueles que estão mergulhados na mesma realidade. Esse novo conceito homônimo está literalmente unida a uma das principais características chave do regime militar que, exigia as pessoas que fossem contra o regime social se silenciassem, o sujeito não possuía nenhum direito de expressar o seu inconformismo sobre a estrutura e o autoritarismo militarista do estado, com isso a canção cálice denúncia a forte imposição do silencio, da falta liberdade de expressão verbal, artística e literária. Outra consideração que nos chama atenção é a maneira que a composição Cálice foi musicada, ela foi composta esteticamente como oração, a canção começa como uma intensa prece ao Pai que afaste esse autoritarismo, essa falta de expressão, que afaste esse cale-se exigido pelas autoridades, percebe-se que a música inicia-se com uma súplica “coralizada” três vezes como se fosse um terço que conta com a repetição de orações; “Pai! Afasta de mim esse cálice, Pai! Afasta de mim esse cálice, Pai! Afasta de mim esse cálice, de Vinho Tinto de Sangue...”.
Essa histórica música contextualiza a falta de liberdade e expressão que os homens e mulheres possuíam no governo ditado pelos militares e ecoa a denuncia dos fatos históricos que dominavam a sociedade brasileira naquela época como a já citada falta de expressão política, artística e social e, além disso, a frieza e a falta de humanismo e alteridade. Essa canção, Cálice, entre outras, foi proibida na época e só retornou por volta de cinco a seis anos mais tarde. Outra canção que não foi possível deixar fora dessa sucinta reflexão foi a música Apesar de Você, essa canção é significante porque lança uma condição de perspectiva com pitadas de esperanças, de que “Apesar de Você, Amanhã vai ser outro dia”, por meio desse pequeno e forte trecho é possível perceber mais umas das mensagens subliminares que Chico Buarque ressoou, é possível reconhecer a forte crítica de que esse regime inventado pelos militares não há de durar muito tempo, “hoje é você quem manda”, quem dita, mas amanhã tudo pode mudar, em suma, a certeza de que a democracia comunista fosse regar a sociedade da época e germinar a libertação do sistema militar é ecoada através do canto Apesar de Você.
Essa canção, Apesar de Você, também ressoa intensamente o que foi de fato o período da ditadura militar, o conveniente é observar a maneira que Chico Buarque musicalisa essa composição, por meio de um ritmo que mistura elementos bem africanos, ritmado por meio de alegre samba[4], ele narra os tons de cinza que compunha a época, esse tons são expresso através de palavras chaves que sintetizam o cruel regime militar de 64 como, proibir – sofrimento – reprimido – escuro – tristeza – amargar e ao mesmo tempo em que a música denuncia, ela também canta a esperança creditada no amanhã, que será um novo dia; também percebe-se a mensagem de que o sistema vai se dar mal, por aqui (no período) não haver espaço para tanta tristeza, tanto silêncio, tantos olhares cruzados e para o chão, tantas lagrimas, e tanta escuridão inventada por você[5]. Vale muito à pena escutar não só essas composições, mas outras que ressoam fragmentos importantes da história do Brasil que não só estão relacionadas ao nosso contexto histórico, mas também fazem parte da nossa identidade social e pessoal também, afinal de contas, existem pessoas que circulam cotidianamente ao nosso lado que também fizeram parte desse período, por esse motivo a necessidade de escutar a música e também poder ouvir essas pessoas, proporcionará um diálogo de grandes trocas de conhecimento que nutriram não só a sabedoria social de cada sujeito, mas também permitirá que a consciência política seja efetivamente aberta, tendo um singelo e significativo espaço do dia a dia, afinal de contas, quem constitui o Estado é o próprio homem, afinal de contas, é esse sujeito que existe e é o historiador de sua própria vida, que está imerso em uma cultura e que manifesta os seus sentimentos, saberes por meio de múltiplas linguagens, uma delas é a música que por meio de palavras transmitem conhecimentos necessários para o compartilhamento de vivencias e experiências existenciais.


[1] Historiador Inglês com forte ligação com a tradição marxista, produziu muitas obras tratando sobre o desenvolvimento social trabalhista.
[2] Foi Aluno da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, cursou até o terceiro ano.
[3] Homônimas são palavras que possuem a mesma fonética, mas a grafia e significados diferentes, como do caso, entre outras, das palavras conserto e concerto e cálice e cale-se.
[4] Palavra originada da língua africana Quimbundo, onde cujo significado é Reza, Oração. O Samba é exercida no candomblé no ato do recebimento da divindade ao corpo, que desce do mundo sagrado e encarna em seu filho.
[5] O pronome de tratamento em segunda pessoa você, na música, refere-se ao regime militar, em suma aos Militares que nutriam o sistema.

Referência:

Site: Chico Buarque, consultado no dia 12 de Abril de 2012: http://www.chicobuarque.com.br/vida/vida.htm
SEKEFF. Maria de Lourdes. Da música, seus usos e recursos. 2ª.ed. ver. e ampliada. – São Paulo: Editora UNESP, 2007.
PAES. Maria Helena Simões. A década de 60, Rebeldia, Contestação e repressão política. 3ª. ed. – São Paulo: Editora Ática, 1995.

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