É
muito atraente percebermos a grande importância das linguagens artísticas no
processo de construção de um importante acervo histórico social de uma nação
cultural. A literatura, a música, as grandes pinturas academicistas, entre
outras linguagens, possuem os fatos sociais expressos no cotidiano como fonte
de inspiração para a criação de seus registros artísticos. Por meio desse
raciocínio, essa breve pesquisa tem como objetivo lançar uma concisa análise
sobre a admirável presença da música
(do grego musiké tekhné, “arte das Musas”) como fonte de conhecimento
histórico. Essa fonte será duas canções das quais serão possível nutrir a cede de
conhecimento sobre a sociedade brasileira vivida na década de 64, era governada
pela ditadura militar.
Mas
antes, é conveniente perceber que a música oral é uma linguagem que está
presente em nossa cultura há muito tempo, essa oralidade musicada possui uma extraordinária
importância por conseguir ecoar de gerações a gerações o conhecimento e
tradições populares, necessários para a permanência da identidade cultural de
um povo, por meio disso, é necessário ter a consciência de que a música oral
possui como ferramenta principal a Palavra como código para a transmissão de um
conhecimento, a palavra apresenta um poder muito amplo por conseguir atingir a
subjetividade do outro sujeito que escuta e entende, por isso que, esse componente
da fala às vezes machuca, alivia e até “grita” ao reivindicar por meio de
intensas palavras de ordem ditas em tom
alto, quando rezamos (subjetivamente ou coletivamente em coral), muitas vezes
não nos conscientizamos de que estamos orando por meio de palavras, e são essas
que nos ligam com o mundo sagrado, com as nossas divindades, por isso que vale
muito à pena termos a consciência sobre a força intensa que uma palavra possui
quando dita no cotidiano em qualquer situação.
Francisco
Buarque de Holanda, carinhosamente conhecido por Chico Buarque conseguiu expor por
meio de diversas canções e palavras a sua experiência histórica, vivido e
testemunhado aqui no Brasil, durante o período da ditadura militar, vale muito
à pena nos recorrermos às palavras do historiador Eric Hobsbawm[1] citado na introdução do livro A Década de 60. Rebeldia, Contestação e
repressão política de Maria Paes para percebermos o valor do sujeito que
está imerso existencialmente em uma situação histórica como um agente
historiador, sendo acadêmico ou não, por possuir uma memória pessoal;
Ali onde os historiadores tentam se defrontar com um período para o qual
existem testemunhas oculares vivas, dois conceitos de história bem diferentes
se chocam ou, no melhor dos casos, completam-se mutuamente: a acadêmica e a
existencial, o arquivo e a memória pessoal. Pois todo mundo é historiador de
sua própria vida passada consciente, na medida em que elabora uma versão
pessoal dela: um historiador nada confiável, sob a memória dos pontos de vista,
como bem sabem todos os que se aventuram pela “história oral”, mas um
historiador cuja contribuição é essencial (Eric Hobsbawm).
Esse
trecho extraído na obra A era dos
Impérios de Hobsbawn elucida explicitamente o caso de Chico Buarque por ser
além de um cantor, compositor, dramaturgo, escritor e ter tido contato com a
academia[2], ser
um sujeito que esteve imerso em um importante contexto histórico adquirindo um
intenso acervo em sua memória para ser compartilhado e também registrado, “sendo
historiador de sua própria vida” que está inteiramente ligada à vida dos outros
que não só viveram naquela época, mas desses que estão aqui no século XXI
e precisam ter acesso a esses fatos ocorridos da década de 64 para possuírem a
consciência histórica social, e o mais atraente é que esse acesso também é
feito por meio da música de Chico Buarque, que estão compostas por intensas
palavras que ecoam e atingem a nossa consciência contemporânea.
Uma
das músicas escolhidas para análise desse trabalho foi à composição Cálice. Essa música possui como título a
palavra Cálice, que lança um intenso sentimento religioso por estar presente em
cultos católicos. O ponto atraente da música é a presença de mensagens
subliminares, uma dessas mensagens é expressa através da palavra Cálice por ser
considerada pela gramática portuguesa um homônimo[3] que
ganha o sentido de cale-se ao sair da voz do cantor, claro que o objetivo é despistar
a censura da ditadura militar e levar essa mensagem para aqueles que estão
mergulhados na mesma realidade. Esse novo conceito homônimo está literalmente unida
a uma das principais características chave do regime militar que, exigia as
pessoas que fossem contra o regime social se silenciassem, o sujeito não possuía
nenhum direito de expressar o seu inconformismo sobre a estrutura e o
autoritarismo militarista do estado, com isso a canção cálice denúncia a forte
imposição do silencio, da falta liberdade de expressão verbal, artística e literária.
Outra consideração que nos chama atenção é a maneira que a composição Cálice
foi musicada, ela foi composta esteticamente como oração, a canção começa como uma
intensa prece ao Pai que afaste esse autoritarismo, essa falta de expressão,
que afaste esse cale-se exigido pelas autoridades, percebe-se que a música
inicia-se com uma súplica “coralizada” três vezes como se fosse um terço que
conta com a repetição de orações; “Pai! Afasta de mim esse cálice, Pai! Afasta
de mim esse cálice, Pai! Afasta de mim esse cálice, de Vinho Tinto de Sangue...”.
Essa
histórica música contextualiza a falta de liberdade e expressão que os homens e
mulheres possuíam no governo ditado pelos militares e ecoa a denuncia dos fatos
históricos que dominavam a sociedade brasileira naquela época como a já citada
falta de expressão política, artística e social e, além disso, a frieza e a
falta de humanismo e alteridade. Essa canção, Cálice, entre outras, foi proibida
na época e só retornou por volta de cinco a seis anos mais tarde. Outra canção
que não foi possível deixar fora dessa sucinta reflexão foi a música Apesar de Você, essa canção é
significante porque lança uma condição de perspectiva com pitadas de
esperanças, de que “Apesar de Você, Amanhã vai ser outro dia”, por meio desse
pequeno e forte trecho é possível perceber mais umas das mensagens subliminares
que Chico Buarque ressoou, é possível reconhecer a forte crítica de que esse
regime inventado pelos militares não há de durar muito tempo, “hoje é você quem
manda”, quem dita, mas amanhã tudo pode mudar, em suma, a certeza de que a
democracia comunista fosse regar a sociedade da época e germinar a libertação
do sistema militar é ecoada através do canto Apesar de Você.
Essa
canção, Apesar de Você, também ressoa intensamente o que foi de fato o período
da ditadura militar, o conveniente é observar a maneira que Chico Buarque
musicalisa essa composição, por meio de um ritmo que mistura elementos bem
africanos, ritmado por meio de alegre samba[4],
ele narra os tons de cinza que compunha a época, esse tons são expresso através
de palavras chaves que sintetizam o cruel regime militar de 64 como, proibir –
sofrimento – reprimido – escuro – tristeza – amargar e ao mesmo tempo em que a
música denuncia, ela também canta a esperança creditada no amanhã, que será um
novo dia; também percebe-se a mensagem de que o sistema vai se dar mal, por aqui
(no período) não haver espaço para tanta tristeza, tanto silêncio, tantos
olhares cruzados e para o chão, tantas lagrimas, e tanta escuridão inventada
por você[5]. Vale
muito à pena escutar não só essas composições, mas outras que ressoam fragmentos
importantes da história do Brasil que não só estão relacionadas ao nosso
contexto histórico, mas também fazem parte da nossa identidade social e pessoal
também, afinal de contas, existem pessoas que circulam cotidianamente ao nosso
lado que também fizeram parte desse período, por esse motivo a necessidade de escutar
a música e também poder ouvir essas pessoas, proporcionará um diálogo de
grandes trocas de conhecimento que nutriram não só a sabedoria social de cada
sujeito, mas também permitirá que a consciência política seja efetivamente
aberta, tendo um singelo e significativo espaço do dia a dia, afinal de contas,
quem constitui o Estado é o próprio homem, afinal de contas, é esse sujeito que
existe e é o historiador de sua própria vida, que está imerso em uma cultura e
que manifesta os seus sentimentos, saberes por meio de múltiplas linguagens,
uma delas é a música que por meio de palavras transmitem conhecimentos
necessários para o compartilhamento de vivencias e experiências existenciais.
[1] Historiador Inglês com forte
ligação com a tradição marxista, produziu muitas obras tratando sobre o
desenvolvimento social trabalhista.
[2] Foi Aluno da Faculdade de
Arquitetura da Universidade de São Paulo, cursou até o terceiro ano.
[3] Homônimas são palavras que
possuem a mesma fonética, mas a grafia e significados diferentes, como do caso,
entre outras, das palavras conserto e concerto e cálice e cale-se.
[4] Palavra originada da língua
africana Quimbundo, onde cujo significado é Reza, Oração. O Samba é exercida no candomblé no ato do recebimento da divindade ao corpo,
que desce do mundo sagrado e encarna em seu filho.
[5] O pronome de tratamento em
segunda pessoa você, na música, refere-se ao regime militar, em suma aos
Militares que nutriam o sistema.
Referência:
Site: Chico Buarque, consultado no dia 12 de Abril de 2012: http://www.chicobuarque.com.br/vida/vida.htm
SEKEFF.
Maria de Lourdes. Da música, seus usos e recursos. 2ª.ed. ver. e ampliada. –
São Paulo: Editora UNESP, 2007.
PAES.
Maria Helena Simões. A década de 60, Rebeldia, Contestação e repressão
política. 3ª. ed. – São Paulo: Editora Ática, 1995.